Percorri 70% desta caminhada e passo a relatar as mudanças que ocorreram nessa gloriosa época. Quem conhece a origem e o início dela, cem anos atrás, acha necessário que ela seja conhecida na posteridade. As famílias que colonizaram Venda Nova saíram, todas, da comunidade de Treviso, norte da Itália, sendo que lá não havia famílias bem assentadas; eram pobres e algumas passavam fome, trabalhando sob o regime feudal da agricultura latifundiária, nos grandes centros produtores de trigo e vinho. A maioria da população vivia marginalizada sob o comando dos latifundiários, donos de extensas áreas de terras. A classe operária não tinha perspectivas de melhoria se continuasse a viver na Itália. Sabe-se que diversas famílias que colonizaram Venda Nova (Falqueto, Caliman e Zandonadi), entre tantas outras, trabalhavam até 12 horas no serviço das lavouras de trigo e vinhedos e, à noite, ainda faziam artesanato. Para o sustento próprio, tinham apenas uma refeição por dia. Não havia diferença de nível entre os camponeses desta imigração. Pobres, honestos, com grande amor pelo trabalho e, principalmente, acostumados a enfrentar os maiores sacrifícios. A vinda para a América os fascinava. Antes que viessem para o Espírito Santo, com a epopéia de um patrício, o célebre Garibaldi, já tinham ido para o sul do país levas e mais levas de imigrantes, colonizadores de vastas áreas do interior do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. No Estado de São Paulo, com a crescente produção de café, os grandes fazendeiros tinham necessidade de reforçar a mão-de-obra e buscavam trabalho de alemães e italianos. Com relação ao Espírito Santo, cujo interior, quase todo, era formado por densas florestas, houve interesse do Governo Imperial em colonizar esta vasta região, através da doação de cinco alqueires de mata para cada imigrante, dividindo a região em territórios. Os que saíram de Treviso e vieram para o Espírito Santo chegaram aqui quando as regiões ao redor de Alfredo Chaves, mais cômodas e férteis, tinham sido ocupadas por imigrantes que haviam vindo de outras regiões da Itália. Os nossos familiares ocuparam a região da Estação de Matildes, no município de Alfredo Chaves e parte do município de Domingos Martins. As terras que eles ganharam não eram as terras dos seus sonhos que traduziam as Belas canções na Itália. Por outro lado, pobres, sempre foram, e passaram a ser donos de terras de pura floresta virgem representava a liberdade, a emancipação. Eles ainda acalentavam o belo sonho de livres, com o passar dos anos, virem a conquistar a grande área de preciosas terras da mata Atlântica capixaba que estava a espera deles. Os arredores de Matildes e quase toda comunidade coesa de São Pedro de Matildes trabalhavam de sol a sol, seis dias por semana. Aos domingos e nos dias santos, todos juntos, ao redor da humilde capela, expressavam, em primeiro lugar, o sentimento de agradecimento a Deus pelos dons concedidos a eles; todos concentrados em longas preces na Capelinha e depois na praça, a efusão de sentimentos presos, o abraço amigo e sincero, o bate-papo cordial, cada qual contando as proezas da semana. Na Itália, não tinham liberdade de ir à caça, de encontrarem frutos silvestres: a bananeira, a goiabeira e o pé de maracujá. Além disso, ainda na Itália, para que todos tivessem o necessário para o sustento, os mais idosos, os pais de família, reservavam parte da minguada marmita para levá-las para os lares, a fim de dividi-la com a esposa e filhos.
Aqui no Brasil, se colheita do café mal atendia a
subsistência, pelo menos tinham, nos arredores da casa, caça à vontade e cabeças
de palmito em profusão. Acabara-se o perigo de passar fome. No período de uns 20
anos, nas terras áridas e montanhosas que eles se apossaram quando chegaram,
apesar da inexperiência no trato com a natureza, a exemplo das derrubadas de
matas, o plantio de culturas tão diversas daquelas de além-mar ficou-lhes na
mente como a certeza de que seriam vitoriosos. Estavam eles longe da estagnação
em que viveram, período aquele, sem futuro na Itália. Na fase inicial, puderam
conhecer o segredo de onde assegurar o futuro, procurando áreas mais férteis e
Venda Nova, a100 quilômetros mais distante pelo interior, e ao tema das
conversas domingueiras. Com isto, houve quem se arriscasse a percorrer picadas
na mata virgem e, após três jornadas, encontraram a tão desejada terra dos
sonhos. Iniciaram esta epopéia membros das famílias Venturim, Carnielli, Zorzal
e Mascarelloe, num prazo de três anos, toda colônia de imigrantes localizada em
Araguaia, Santo André, São José do Iriritimirim, São Martinho, Matildes, São
Marcos Maravilha, Carolina e, principalmente, São Pedro de Matildes, ficou de
posse de toda região da Mata Atlântica do alto Castelo, terras férteis,
sobretudo, em Venda Nova do Imigrante. Com esta imigração, levada pelo afã de
alargarem, a área para o futuro dos filhos, é que, neste recanto do centro-sul
do Espírito Santo, iniciou-se, talvez no Brasil, a verdadeira Reforma Agrária,
com propriedades bem trabalhadas em regime de mão-de-obra familiar, cuja área
não ultrapassava 100 hectares por família. Aqui, em Venda Nova, e em toda região
do Alto Castelo, estavam as grandes fazendas recém-fundadas por poderosos
fazendeiros produtores de café no Rio de Janeiro e Minas que começavam a ter um
futuro promissor, construindo suntuosas sedes, tudo feito por mãos de escravos.
Eles obrigavam os donos a vender as propriedades, restando apenas áreas ao redor
da sede do município que estão nas mãos dos descendentes destes fazendeiros.
Vinte anos após a chegada dos imigrantes de
origem italiana nesta região do Alto Castelo, não ficou sequer um palmo de
terras devolutas. A extensa floresta virgem começou a ter milhares de pequenas
clareiras onde eram construídas as sedes de pau-a-pique ou os casarões que
abrigaram famílias numerosas. Em geral, as sedes tinham um projeto unificado de
construção: a casa-sede (sobrado), para melhor garantir o descanso noturno,
tinha o dormitório na parte de cima, protegendo, assim, contra o ataque de
animais; o moinho bem aproveitado, por pequena que fosse a queda d’água; pequena
área de pastagem, cercada de arame farpado, onde ficavam uma ou duas vaquinhas
de elite, e um touro reprodutor, uma junta de bois e um animal de sala; o
estábulo, onde eram presos os bezerros, à noite, e ordenhadas as vacas, pela
manhã; o chiqueiro e o galinheiro para a engorda de porcos e para prender as
galinhas, no período de plantio, respectivamente.
Na primeira fase da imigração, já em Matildes,
formaram-se técnicos competentes para todas as atividades do campo. Chegando
aqui em Venda Nova, todos os adultos eram bons obreiros, sabiam distribuir
tarefas para todos os membros da família: marceneiros, pedreiros, machadeiros;
construíam moinhos, engenhos de açúcar e monjolos; lavravam a madeira e faziam
tabuinhas (não havia telhas de barro) para as coberturas; construíam as paredes
de estuque; manejavam a serra para confeccionar peças de madeira para as casas;
faziam fornos caseiros para a fabricação do pão, a mêscola para dona de casa
mexer a polenta e o caprichado rolo de madeira para a feitura do macarrão.
Estavam preparados para tudo: fabricavam calçados (com ferramentas próprias), os
socoli, as bolsas para irem à caça com os cartuchos de espingarda, que
eles mesmos carregavam. Um detalhe: papai fazia as navalhas de uso da família e
até espingarda de dois canos.
Tudo isso e tantas outras invenções e trabalhos
próprios dos imigrantes estarão, em breve, em exposição no Museu do Imigrante,
já em adiantada fase de construção no prédio da Casa da Cultura. O projeto foi
elaborado e está sendo executado pela organização dos universitários do lugar, a
AMENA.
A primeira etapa da colonização de Venda Nova do
Imigrante estabeleceu, nesta forte união da comunidade, o marco de independência
por ela tanto desejada. Saindo das terras improdutivas dos arredores das
estações ferroviárias de Araguaia e Matildes, em dois decênios de duro trabalho
no desbravamento da floresta, eles conseguiram implantar, no Estado, uma colônia
sui generis, dando início a uma arrancada que marcou o futuro do
Espírito Santo. Houve um progresso extraordinário no setor agrícola, nas
atividades culturais e políticas, vencendo, sobretudo, os duros obstáculos pela
união dos esforços, não como na Itália, subsidiados pelos grandes senhores, mas
crescendo juntos, formando um contingente humano de primeira ordem, para o
prosseguimento da colonização no interior do estado. Apoiando-se em bases
sólidas, a partir de 1930 até 1950, ocorreram mudanças notáveis. Aqui, em Venda
Nova, outra vez, foi a família Altoé a iniciar esta segunda etapa. Canalizando a
água do córrego Viçosa por uma distância de um quilômetro, a família de Angelo
Altoé conseguiu colocar em funcionamento, com uma queda de poucos metros,
primeira usina elétrica movida à força hidráulica, gerando energia para
movimentar máquinas de beneficiamento de café e arroz e, à noite, a iluminação
elétrica das casas dos familiares; a rede foi estendida até a capela local, numa
distância de um quilômetro e meio. Isto, se na me engano, por volta de 1920.
Após a construção da primeira usina dos Altoé, foram surgindo pequenas forças
hidráulicas na Providência, com os Carnielli; em Pindobas, com os Scabello; na
fazenda União, com os Bissoli; na fazenda Tapera, com os Lourenção; na
Lavrinhas, com os Caliman; em Bananeiras, com os Falqueto e em São João de
Viçosa, com os Venturim. Essas micro usinas movimentavam máquinas de café,
moinhos de fubá, engenhos de ferro para moer cana de açúcar mascavo e pequenas
fábricas de mandioca. Na nossa propriedade, com papai e titio Miguel Zandonadi à
frente, o córrego Lavrinhas não tinha queda d’água relevante, mas os dois
fizeram um projeto audacioso: represaram o córrego na divisa com o vizinho,
titio Fioravante Caliman, e as águas da represa foram desviadas por um canal
feito pela força braçal de um quilômetro de distância até a sede da propriedade.
Bicas de madeira escavadas e suspensas levavam as águas para uma queda de um
metro e meio de altura. Esta queda fazia girar uma roda d’água, na qual estava
fixado um eixo vertical de cerca de 6 metros de comprimento onde foram adaptados
três pilões de madeira. Estes, suspensos e soltos, com o girar da roda, batiam
numa grande cuba de madeira e, assim, socavam café em cascas ou espigas de milho
debulhadas. Em outro canto, outra engenhoca bolada por eles movimentava um
ventilador que limpava o café da casca e o milho dos sabugos; dali o produto era
ensacado e vendido. Um trabalho enorme e bem feito que fez nossos pais sorrirem
de satisfação e sabem por que? Trabalharam a maquinaria por dois anos, sobrando
tempo para prepararem o café do proprietário vizinho. Uma vez, contudo, foram
atuados pela fiscalização municipal e obrigados a pagar imposto acrescido de
multa, que lhes ficou muito além do que tinham usufruído. Era criança, mas pelo
visto, compreendi que foi a maior decepção que papai sofreu na vida. A roda
d’água parou, a construção foi remodelada para tulha de milho e aquela bela obra
serviu para nós, crianças; no interior da roda, brincava-se de girar até cansar,
aproveitando as horas que eles não podiam nos vigiar, o que era um divertimento
muito gostoso.
Foi também nesta época, que nós, crianças, saímos
de casa curiosos até a beira da estrada onde avistamos um homem sentado em cima
de um troço com duas rodas, uma na frente e outra atrás. Ele estava agarrado nas
duas orelhas do bicho, sentado nas costas dele cutucando a barriga com os pés.
Era a primeira bicicleta a entrar na região, conduzida pelo primo Joaquim
Falqueto.
Da colonização de Venda Nova do Imigrante até o
início do transporte rodoviário da produção agrícola e da madeira de lei (cedro)
em pranchões, a princípio por estradas de chão, na década de 40, a tropa foi o
único transporte possível para longas distâncias. Ela era constituída por lotes
de burros, cada qual com 10 animais. Café, feijão, milho, madeira serrada, eram
vendidos na praça de Castelo, onde seguiam para o Rio de Janeiro em estrada de
ferro (a via férrea chegou a Castelo em 1986). “Tropeiro a pé, arrieiro de
cavalo acompanhando a tropa para descarregamento de 20 sacos de café nos
armazéns Vivácqua”, foi a tônica de quase 30 anos de heroísmo de Constante
Venturim, Ernesto Comarella, Atílio, Antônio, Afonso e João Pizzol, na
comercialização dos produtos primários entre Venda Nova e os centros
consumidores.
Nesta epopéia, não posso omitir o nome do Rei dos
Tropeiros: Leovegildo dos Santos, dono de nove lotes de burro. Era um negro de
alma branca que se tornou lendário pela sua honestidade. Todos confiavam nele.
Transportava o café para o armazém, especulava o melhor preço, recebia, voltava,
fazia as contas com o dono do café cobrando o frete e chegava, religiosamente,
ao saldo da operação. Leovegildo não sabia ler. De musculatura impressionante,
morreu relativamente jovem. A confiança dos Vendanovenses no negro Leovegildo
era absoluta. Um outro, também de cor e lendário em Venda Nova, foi o Salomão,
cujo sobrenome ninguém conheceu. Este não era tropeiro. Durante toda sua vida
até a velhice, foi marinheiro. Dizia ter viajado e conhecido todos os países do
mundo daquela época. Sabia falar sete idiomas. Infelizmente, deixou-se dominar
pelo vício da bebida e depois dos 60 anos de idade foi dispensado pela Cia.
Fluvial na qual trabalhava. Não gravei o nome da família que o acolheu em Aracê,
Domingos Martins. Mas sempre aparecia em Venda Nova nas festas e funções
religiosas. Era cercado por todos que queriam ouvir o que havia presenciado pelo
mundo. A primeira vez que veio em Venda Nova, sóbrio, ao entrar na Igreja, um
italiano o xingou no dialeto, pensando que ele não entendesse, por ser negro.
Ele se virou para o italiano e num dialeto bem compreendido por ele, disse em
voz alta: “Si, si, son negro de ma de anima Bianca, mas no come tu, que sei
uno talian de anima negra e s’pôrca”. Traduzindo: “Sim, sim, sou negro mas
de alma branca, mas não como você, que é um italiano de alma negra e suja”. O
italiano quase não teve mais vontade de entrar na Igreja de vergonha.
Fonte: Venda Nova do Imigrante – 100 anos
da colonização italiana no Sul do Espírito Santo.
1992Autor: Máximo
ZonadonadiCompilação: Walter de Aguiar Filho,
dezembro/2011Nota: Este livro foi doado para a Casa da
Memória de Vila Velha pela Família de Almir Agostini,1995
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