Parece que não tinha nenhum sangue europeu; era
apenas um índio, com seu nome cristão de Bernardo José dos Santos. Era alto, de
espáduas largas, a cara grande. Vejo numa gravura da época sua basta cabeleira
negra, e um bigode ralo que lhe pelo canto da boca, no feitio mongol. A cara é
enérgica e suave, e as sobrancelhas finas se unem no centro, sob uma ruga
vertical na testa; suas extremidades descem, numa curva em que se lê obstinação.
O caboclo Bernardo está com 28 de idade no dia 7 de setembro de 1887. É nascido
ali mesmo onde vive, no povoado de Regência Augusta, antiga Barra do Rio Doce –
e como seu pai, o velho Manduca, conhece o rio, o mar, e a mata. Foi naquele 07
de setembro, à uma e quarenta da madrugada, sob um raivoso sudoeste e grande
escuridão, que o cruzador Imperial Marinheiro, um dos mais
novos barcos da Marinha de Guerra Brasileira (deslocamento, 726 toneladas; boca,
8 m 24; calado 3m 40; máquina 150 cavalos; marcha horária 11 milhas; armamento,
7 canhões de 32 e 4 metralhadoras, com 142 homens a bordo), chocou-se contra o
pontal sul da Barra do Rio Doce, a 120 metros da costa. Foi arriado um escaler
com 12 homens; o mar arrebentou o escaler, mas 12 homens chegaram às 2 da
madrugada à cabana do patrão-mor da barra para pedir socorro. No escuro, e sem
nenhuma embarcação diante do mar furioso, os homens ficaram na praia enquanto o
mar esfrangalhava o cruzador. Quando veio a luz do dia os náufragos estavam
reunidos nas partes mais altas, ainda não submersas, do barco, e os tubarões
rondavam entre as ondas encapeladas.
O caboclo Bernardo jogou-se ao mar tentando levar
até o cruzador um cabo de espia. Luta contra as ondas, mas é jogado na praia.
Tenta ainda uma vez, e volta novamente, depois de uma luta terrível contra a
força das águas. Sua mãe, uma cabocla velha, pede-lhe para não insistir, mas ele
se lança ainda ao mar. Parece que da primeira vez teria levado o cabo,
excessivamente pesado, amarrado à cintura; de outra o amarrara à sua rede, com
tresmalhos de cortiça, ou a uma linha de pescar, que puxaria pelos dentes. O
fato é que luta em vão contra as águas açoitadas pelo vento; e regressa à praia
exausto. Os náufragos olham tudo aquilo com angústia. O caboclo Bernardo se
desvencilha dos braços dos que querem detê-lo e entra no mar pela quarta vez.
Nada com desespero em direção ao navio, mas não avança; pouco depois é jogado na
areia. Levanta-se – e volta. Só então, pela quinta vez, consegue chegar ao navio
com o cabo salvador. Forma-se um cabo de vai e vem, e os marinheiros saltam de
bordo agarrados a ele para chegar em terra. Muitos o conseguem. Outros,
enfraquecidos pelas horas de tormenta, não resistem e morrem. O caboclo Bernardo
joga então ao mar a única embarcação que resta, uma pequena chalana. Pede dois
marinheiros para ajudá-lo, e ligando essa chalana ao cabo leva os náufragos para
a terra, de dois a dois. De vez em quando a chalana vira; o caboclo Bernardo,
com seus dois companheiros, cai na água para desvirar a embarcação e segurar os
náufragos. Trabalham assim durante horas, até que o mar despedaça de uma vez a
chalana. Havia ainda 13 homens a bordo, que afinal se salvaram em uma jangada
improvisada, agarrando-se ao cabo. Graças ao brutal heroísmo do caboclo Bernardo
foram salvos 128 homens em um total de 142.
Estas notas eu as extraio do livro do Sr.
Norbertino Bahiense O Caboclo Bernardo e o Naufrágio do Imperial
Marinheiro, que acaba de ser publicado em Vitória; e o que não está no
livro me contou o velho Meireles, numa destas manhãs de chuva e sudoeste, ali
mesmo na Barra, onde tudo assistiu. Deixo para outra crônica o resto da história
desse caboclo Bernardo, tão rude e tão bom.
Fevereiro, 1949
Fonte: Crônicas do Espírito Santo, 1984Autor: Rubem BragaCompilação: Walter de Aguiar Filho, janeiro/2012Obs.: Este livro foi doado à Casa da Memória de Vila Velha em abril de 1985 por Jonas Reis
www.morrodomoreno.com.br
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