- Que é que a bandeirinha diz?
- Bombordo! Toda a força a bombordo!
O timoneiro obedece – e olhamos em silêncio para
a proa. A corrente está fortíssima, e a maré inda está baixa. Em nossa frente o
Rio Doce despeja toda sua massa de água cor de lama, de um quilômetro de
largura, em um estreito canal. Temos de passá-lo.
- Bombordo!
A proa hesita um instante – e depois, lenta,
implacavelmente, vai-se voltando para boreste. Os mil cavalos de nossos dois
motores se esbofam à toa.
- Para trás!
- ...
- Marca assim!
Avançamos outra vez, penosamente. “A proa é
esta!” Pode ser algum espadarte que deseje ir desovar na lagoa de Juparanã;
quando a nós vamos em cima de um banco de areia. Bonito. Ouvimos aquele ruído
triste do casco na areia. As ondas assanhadas pelo nordeste ensaiam abordagem
perto da proa. O chefe das máquinas está em silêncio mascando seu toco de
charuto. O caboclo que é considerado prático na barra adota esta atitude não
muito eficiente, mas em todo caso justificável no momento: coça a cabeça. A
bandeirinha, lá longe, manda recados muito salutares, mas inócuos, como um
sargento que berrasse ordens para um recruta paralítico.
Leio trechos seletos de ilustres e antigos
viajantes. O senhor príncipe de Wied Neuwied, em 1815: “A foz...nunca é
navegável; as grandes embarcações não podem entrar por causa dos baixios e dos
bancos de areia...” Saint-Hilaire, em 1818: “O canal muda muitas vezes de
lugar.” Charles Frederick Hartt, 1866: “A barra... é tão má que chega
praticamente a impedir a entrada de navios...as ondas se quebram furiosamente...
É sempre difícil a algumas vezes durante semanas consecutivas é impossível
entrar no Rio Doce...e muitos navios se têm perdido ao tentarem-no.” César
Augusto Marques, em 1878: “A sua embocadura...é perigosa.”
Tudo isso está num livro que o Sr. Norbertino
Bahiense nos conta o naufrágio do cruzador Imperial Marinheiro por aqui em 1887.
Um livro muito bem documentado, de que falarei outro dia; mas no momento ficamos
sabendo que...”entre os destroços do naufrágio, onde as vítimas ainda se
apegavam, e a terra defronte, estavam as ondas cada vez mais encapeladas, e
sobre o dorso das quais, de quando em vez apontavam as antenas periscópicas e
ameaçadoras dos tubarões.”
Não me agrada muito essa imagem de “antenas
periscópicas”, pois na época ainda não havia submarinos, que de resto não
possuem antenas periscópicas, e os tubarões também não deviam ser tão
aperfeiçoados em 1887. Mas me agrada muito menos o quadro em si.
Uma das máquinas a toda força para a frente;
outra a toda força para trás. O L.C.T. adaptado consegue afinal safar-se. Mas
depois de três tentativas resolve fundear atrás do pontal – e só no dia seguinte
conseguirá entrar na barra, mas não avançará pelo rio mais de trezentos metros.
Vamos, um grupo, na baleeira, para terra. É a antiga Barra do Rio Doce, depois
Regência Augusta, em homenagem à Princesa Isabel; hoje apenas Regência, sem o
adjetivo, que a República tirou. Tudo isso quer dizer umas quarentas casas e um
rio que ameaça comê-las – mas é assunto para outra crônica,naturalmente.
Fevereiro,1949
Fonte: Crônicas do Espírito Santo, 1984 -
1ª EdiçãoAutor: Rubem BragaNota: Livro
doado a Casa da Memória de Vila Velha por Jonas Reis,
abril/1985Compilação: Walter de Aguiar Filho,
janeiro/2012Nota: Tiragem de 5.000 exemplares , 3.000 se
destinam a distribuição gratuita, pela Secretaria da Educação e Cultura do
Estado do Espírito Santo
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