Os bondes começaram a
rodar muito antes de meu nascimento. Os que me cabem são praticamente os dos
anos 50, pouco tempo depois que vim da roça para estudar.
Paciente, tranquilo,
vagaroso, submisso ao traçado dos trilhos, desambicioso, portanto, de improvisar
caminhos, parecia até que o bonde é que concedia o tom, o ritmo e o limite dos
sonhos. Nossa alma era ingênua; como ele, arejada e transparente. Nossos
corações igualmente expostos ao acesso de quem nele pretendesse um
lugar.
A pacata cidade mal
abria os olhos para a perpectiva de se transformar no tumulto ruidoso que está
aí. Crime, quando havia, era ao encargo de profissionais assim tão, digamos,
criteriosos em sua violência específica, que seriam considerados cavalheiros de
princípios perto dos celerados sanguinários de hoje, degenerados, totalmente
irresponsáveis, que estupram e degolam e metralham e rasgam as vísceras de
inocentes por um nada.
A corrupção, aqui entre
nós, a ingênua corrupção que mereceu tanta indignação, vista com os escândalos
modernos, seria como que um velocípede face a um trator, um anjo cacheado
confrontado com Mike Tyson.
Ouvíamos música suave,
e o luar, deitando no chão de granito das ruas sem edifícios, consolava
indiscriminadamente todos os poetas, que eram muitos, porque a vida das pessoas,
desatrelada de ambições excessivas, permitia aos corações guardar um canteiro
para a semeadura de devaneios.
A malícia das mulheres,
posta sob um véu de excitante recato, guardava um veneno sutil que a gente -
coitados de nós - sorvia despreocupadamente na enganosa crença de que estávamos
imunes às suas magias.
A televisão nem sonhava
escravizar as pessoas como hoje. Havia, portanto, tempo de sobra para as
famílias se visitarem, combinando bolinhos e genipapina. Em muitas e muitas
casas, usava-se fogão de lenha, criavam-se galinhas no quintal e recebiam-se na
porta, para pagamento mensal, a carne, o pão e o leite; verduras e peixe farto
eram comprados dos vendedores de rua.
As pessoas se
conheciam, os carros eram identificados, sabíamos quem eram os "Canos de ferro",
"mariquinhas", "faroleiros", "boca de siri", "arigós", "fachadas", "mascarados",
"glostorados", as moças que "davam caroço" e todos os demais titulares das
gírias da época.
Hollywood ditava
modelos e gerava fantasias.
Os "galhos do café eram
frágeis demais para sustentar nossa economia", já se dizia, mas Tubarão, quando
muito, era um projeto que ainda seria instalado perto da Praia de Piranhém. Pó,
como já escrevi, nem de coca; fumaça nem de erva. Assim como não havia pontes
nem safenas: éramos só coração.
Fonte:
Crônica publicada em A Gazeta, em 22/03/1992
Autor: José de Figueiredo CostaCompilação: Walter de Aguiar Filho, março/2012
Autor: José de Figueiredo CostaCompilação: Walter de Aguiar Filho, março/2012
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